quarta-feira, 19 de agosto de 2015

HERÓIS ANÔNIMOS

Para Emanoel Xavier Bittencourt.

         Desorganizados, uni-vos! Não tão próximos, para que não pareça algo previamente organizado.
         Somos, senhores, a alegria do mundo! Heróis anônimos, sem rosto, sem reconhecimento público, sem medalhas, sem triênios ou quaisquer adicionais por tempo de serviço. Fazemos da vida uma eterna redescoberta daquilo que uma vez achamos e que perdemos logo em seguida. Ou vice-versa.  Somos os príncipes da surpresa! Surpreendemo-nos a nós mesmos! E lembramo-nos apenas de... esquecer.
         É; somos boas criaturas. Temos bom coração. Livres, independentes. Na verdade, esquecemos quase tudo: a ingratidão, os rancores, as mágoas e o dinheiro também.
         Nós, os desorganizados, somos românticos! Sim, cavaleiros de capa e espada. Sempre nos apaixonamos! Quase que semanalmente... Mas, por quem era mesmo? Bem, isso não vem ao caso... O destino (este sim, vilão miserável e arquiinimigo terrivelmente organizado) guarda-nos apenas a solidão e as marginais, periféricas e suburbanas avenidas.
         Mas não entristeçamos: temos olhos e ouvidos para as coisas simples e belas. Observamos atentamente o curso do Rio Piraí, o canto dos canários, o vôo das andorinhas, o acorde que magistralmente destoa do padrão e nos faz, prazerosamente, encolher os ombros. Assistimos aos gols do Flamengo como se nossos fossem e ao nasceres e pores-do-sol na Serra das Araras (como se fossem nossos). Somos felizes na alegria dos outros e, empáticos, lamentamos o pesar alheio como soldados da esperança feridos na própria carne.
         Sabemos que a bagunça do quarto, os discos empilhados, aquela carta por responder, extratos bancários, fichas telefônicas, livros emprestados, números de telefones, relógios sem bateria, apenas um pé de meia, reclames do chefe, recortes de jornais, cartelas vazias de aspirinas, elásticos arrebentados, clipes tortos e aquela caneta-fantasma que, há um minuto estava em cima do criado-mudo(!), de forma alguma nos desmerecem.
         Os mil compromissos assumidos e não cumpridos não revelam pouco caso, senhores, definitivamente... quase. É antes um desejo de nunca recusar nada a ninguém. Sim, tentamos ser agradáveis e disponíveis. Desagradável e impiedoso é o tempo, primo-irmão do destino! Tão certinho, como um chato com lupas, chega a nos causar pruridos! O tempo, as horas e os minutos não são caridosos. “Os dias são maus”, nos adverte a Santa Escritura, corroborando-nos.
         Aquele maço de cigarros vazio, que há três dias está embaixo da janela, merece profundo respeito. À insônia, em baganas a transbordar o cinzeiro, fez companhia... Somos, com efeito, baganas do que fomos; senhores, filtros impregnados de nós mesmos.
         Mas não nos abatamos! Forçados pela incompreensão e pela Receita Federal, às vezes esboçamos uma lágrima, embaça-se, dolorosamente, os olhos.  Porém, se acaso dela precisarem para regar uma flor: cá está!
         Sim, somos profundamente crédulos no impossível, no improvável, no gol aos 45, no amor aos 90 e no bilhete da Federal! Dizemos ter “estrela”, mas no fundo, acho que Deus gosta de nós...
         Assim, os desorganizados, desligados, esquecidos, atrasados e tantas outras fabulosas criaturas desprendidas e lunares pedem, humildemente, passagem neste mundo onde a tristeza e a indiferença encontram-se “agendadas” por muitos anos.

Piraí, 19 de agosto de 1991. 06 da manhã.

(Revisada em 19 de agosto de 2015).

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