sábado, 10 de outubro de 2009

O PIPOQUEIRO E A SANTA



Perguntado se guardava pipoca de um dia para o outro, Álvaro, o lendário pipoqueiro de Piraí sentenciou: “Não dá. Vira isopor.” É verdade... Certas coisas em nossas vidas são como as pipocas: deixadas de um dia para o outro, viram isopor, perdem o sabor, ficam sintéticas. Outras não. A sabedoria está, precisamente, em distinguir uma das outras. É tarefa difícil, Hercúlea, encontrar o equilíbrio entre o antecipado e o atrasado: o tal “melhor momento”... Se antecipamos corremos o risco de sermos tidos como afobados, sem perseverança e impacientes. Em tempo: ouvi a seguinte frase que achei muito pertinente: a teimosia é uma degeneração da perseverança. Mas continuemos: se postergamos, podemos nos assemelhar ao zagueiro que perde o tempo da bola, chega atrasado, faz falta grave e toma cartão vermelho. Fora do jogo. Perdemos a vez. Por pouco...
Há algum tempo li uma crônica que se chamava exatamente “Por pouco”. Por pouco não fiz isso, não conquistei aquilo, não fui para tal lugar, não disse aquele “sim”...Enfim, uma ladainha de oportunidades perdidas... por pouco. Mas deixemos de lado, por ora, os “por pouco” e voltemos às pipocas.
Vira isopor, sem sal e sem sabor, o abraço que deixamos de dar nos pais, o perdão que não pedimos ou não concedemos, a palavra amiga e precisa a qual recusamos ouvir ou dizer. Vira isopor o “basta” que não demos diante de uma situação de humilhação e vilipêndio. Vira isopor o curso que deixamos de concluir, o novo idioma a aprender, a viagem a fazer. Vira isopor tudo isso e muito mais.
Originalmente, esta crônica se chamava “A alquimia da pipoca”. Claro, eu a tinha escrito sobre um outro aspecto, há muitos anos, bem mais jovem. Reescrevi. O “vira isopor” pretendia ser apenas um desfecho bem-humorado para o texto. Saudosismos à parte, o título original tratava de uma transformação, de uma alquimia. Ocorreu-me que, mais do que nossos gestos e palavras transformarem-se, como as pipocas, isopor, nós mesmos podemos ser vítimas desta maldição. E o pior, de uma dupla maldição: dos “por pouco” e dos “vira isopor”. Além de perdermos o tempo certo (vira isopor), ficamos nos lamentando por toda vida o desfecho de nossas escolhas (por pouco). E o passado se torna um amargo presente e não conseguimos nos livrar dele. Gruda feito carrapato e torna-se uma enfadonha e lamuriosa recorrente em nossas vidas.
Mas, há um jeito, uma esperança. Sempre há. Tão difícil como encontrar o tal melhor momento, mas possível. Trata-se de, como esta crônica, reescrever nossa vida. Não deixar para depois o bem a se fazer hoje. Santa Terezinha de Jesus dizia algo de suma importância: “...só tenho hoje para amar, só tenho hoje, ó meu Deus! Só tenho hoje para dar todos os sonhos meus.” (Adaptação A.C. Santini) . Algum de nós – por mais rico ou sábio que seja – tem posse ou domínio do passado ou do futuro? Ou pode acrescentar um minuto à sua vida, como diz Jesus?
O Pipoqueiro e a Santa tem algo em comum: a urgência. Urge – e é para hoje – vivermos! Ou, como diz o Evangelho: a cada dia basta sua preocupação... o pão nosso de cada dia nos daí “hoje”. Ou ainda o Maná no deserto que era a porção diária necessária, se se guardasse um pouco para amanhã, perdia-se, estragava-se. Como dizia Renato Russo:”...é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã...porque na verdade não há.”
O poeta Vinícius de Moraes tem uma frase interessante: “Meu tempo é quando.” Parafraseando-o, poderia dizer: “Meu tempo é hoje”. E você? Quando é seu tempo? Ontem? Amanhã? Ou o hoje que nos iguala e nos permite realizar bem o “Bem”?
Para finalizar, outra frase, esta de São Pio de Pietrelcina:” Ó, Senhor! O meu passado à Tua Misericórdia, meu presente ao Teu Amor, meu futuro à Tua Providência!” Belo lema para se viver. Hoje.
Grande abraço,
Saulo Soares

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

GRAN TORINO



Assisti, dia desses, Gran Torino, com Clint Eastwood. Parece-me que o estilo rabugento do ator, assimilado por interpretar reiteradas vezes personagens com essa característica, nunca lhe caiu tão bem. Não vou dar detalhes, por razões óbvias, porém a estória de um preconceito transformar-se em amizade – apesar de um tanto comum – vale a pena ser vista. E como vale! Aliás, utilizei o verbo “transformar” (transformar em amizade), mas não é o mais correto, penso. Na Igreja aprendemos que o Pão e o Vinho não se “transformam” no Corpo e no Sangue de Jesus. Há uma transubstanciação. Ou seja, há uma mudança na substância e não na forma, como sugere o verbo transformar. E há nisso uma beleza, leveza e profundidade, porque revela que o que mais importa acontece sem que a vista perceba: ocorre na substância e não na aparência.
O mesmo Jesus, em determinado momento diz aos seus discípulos: Já não vos chamo de servos e sim de amigos! Mudança substancial. É como no Pequeno Príncipe: o essencial é invisível aos olhos.
A bem da verdade, quando me sentei para escrever esta crônica, o tema que me apetecia era etimologia. Do quanto as palavras, em seus significados originais, podem nos revelar sobre si próprias e sobre nós mesmos. Lembrei-me da palavra “ingênuo” que, para o senso comum, pode ser sinônimo de bobo, de excessivamente crédulo. Ingênuo quer dizer, etimologicamente, de joelhos. Aquele que se coloca de joelhos. A pessoa que se põe de joelhos se faz menor dos que os que estão em pé. Faz-se... criança. Talvez, por esse motivo, o mesmo Jesus diz que “quem não se fizer como uma criança, não entrará no Reino dos Céus.” Sim, quem não se abaixa, não se torna da estatura de um pequeno, não reconhece estar perto do chão, do húmus (daí a palavra “humano”, “humilde”), não pode enxergar e extasiar-se diante da grandeza e da realeza do Amor, do Reino do Amor.
Gran Torino tem um final fantástico. Um final “ingênuo”. Em meio ao caos de tanta violência gratuita, constrangedora, um final amoroso que decreta o fim de toda rabugice e revela – parêntesis: revelar significa “tirar o véu” - que mesmo sobre a mais triste e carrancuda aparência, sobre o mais roto véu há, definitivamente, uma substância. E que essa pode e deve ser mudada, não obstante o que por fora exista. Joga no lixo a expressão de que a vingança é um prato que se come frio e adverte, como nos anúncios dos Ministérios: Vingança causa indigestão na alma.
Ainda tenho alguns filmes a assistir. Dizem que “O caçador de pipas” e “O menino do pijama listrado” são muito bons. Ainda não os vi. Tem, também, o “Antes de partir”. Estão todos aguardando o Sr. Saulo ter um tempinho. Mas o que realmente importa é saber enxergar o essencial, de natureza invisível, e compreender o que dizem as palavras, mesmo na sua mudez.
Mas como? Enxergar o que não se vê? Ouvir o que não se diz? Sim. E isto somente se dá pela fé. São Paulo nos ensina que a “fé é a posse antecipada de uma realidade que não se vê.”
É preciso ter fé. Acreditar, dar crédito, confiar, arriscar. Crer no bem. Para terminar me lembrei de um outro filme: Indiana Jones e aquela maravilhosa cena do “passo de fé”. Para quem não se recorda ou não viu: um grande abismo e um objetivo separado por ele. Era necessário um passo de fé, dizia o caderninho em suas mãos. E o herói-arqueólogo o dá. Cerra os olhos, “dobra os joelhos” (desta vez para o alto) e pisa... firme! Um caminho de pedras, das mesmas cores e nuanças das paredes do abismo, num fantástico mimetismo, num lance de gênio de tomada da câmera, numa perspectiva até então não compreendida nem experimentada, se revela seguro na direção do que se procurava.
É. O cinema vai além da pipoca e do guaraná. Como vai além quem decide, invertendo a sentença, “crer para ver”.
Grande abraço,
Saulo Soares

segunda-feira, 13 de abril de 2009

DARFUR E O CRISTO CEGO


Raramente se vê na grande mídia posições favoráveis à Igreja, ao cristianismo e à fé. Quando muito, aludem à fé, de uma forma reducionista, como um tipo de terapia ou uma “penicilina de Deus”. Parece-me que a mensagem é: “Sejamos sensatos: crer é bobagem.”
Estranhei, portanto, quando li na capa da Veja – Ed. 2092, às vésperas do Natal, ao lado da foto de uma africana trazendo nos braços seu filho visivelmente subnutrido, a seguinte afirmação do colunista Reinaldo Azevedo: “Precisamos de Cristo não porque os homens se esquecem de ter fé, mas porque, com frequência, eles abandonam a Razão e cedem ao horror.” Fé e Razão, tantas vezes contrapostas, aparecem, nesta significativa frase, como interdependentes e justapostas: excluindo-se Cristo (e a fé N'Ele e D'Ele decorrentes) corre-se o risco de ceder ao horror. Fé e Razão ou, Fides et Ratio, é o título de um documento da Igreja onde se afirma serem elas as duas “asas” necessárias ao pleno “vôo” do conhecimento.
A matéria completa da Veja trata dos horrores acontecidos no Sudão, mais precisamente em Darfur, onde prevalecem, a despeito dos organismos internacionais e entidades de defesa dos direitos humanos, a guerra, o genocídio, a matança selvagem, a fome imposta e os estupros. O repórter - Diogo Schelp - leva-nos à seguinte reflexão: “O mesmo mundo que se apieda de um filhote de urso-polar abandonado pela mãe no zoológico de Berlim fecha os olhos para as centenas de milhares de crianças subnutridas dos 130 campos de refugiados de Darfur.” Não há Lei em Darfur, nem misericórdia, nem esperança ou glória.
Samuel Fuller, autor e diretor do filme “Agonia e Glória” (The Big Red One), participante da Segunda Grande Guerra, afirma que “A verdadeira glória da guerra é sobreviver a ela”. O filme possui cenas memoráveis. Sem dúvida uma delas é a inicial: num cenário devastado, aparentemente só, um sargento americano, baioneta e fuzil em punho é, primeiramente, atacado por um cavalo “ensandecido” (os animais também têm seu comportamento alterado diante de tanta violência) e posteriormente assassina um oficial alemão, apesar de o inimigo pedir-lhe misericórdia e afirmar ter a guerra acabado ( e ela – a guerra – tinha, de fato, terminado). Tudo isso se dá sob a égide de um crucifixo onde o Cristo têm os olhos furados (deles saem insetos), numa clara referência à “cegueira” de Deus diante de tamanhos absurdos. Ora, como disse o repórter, não somos nós precisamente aqueles que fechamos os olhos (fazendo-nos de cegos), diante de tantas injustiças e horrores? Parece-me que se torna mais cômodo e alivia o peso de nossas consciências culpar a Deus por sua “não interveniência just-in-time” em nossa liberdade, do que assumirmos, de fato, nossas mazelas. Ou, como em algumas seitas: põe-se logo a culpa no “encosto”, no “demônio” e lava-se as mãos feito Pilatos. Justamente, nós, que prezamos tanto a liberdade e a temos como valor inegociável e sobre o qual não se transige!
Reinaldo Azevedo, no mesmo artigo do qual se retirou a afirmação da capa, diz: “Em Auschwitz, no Gulag ou em Darfur, vê-se, sem dúvida, a dimensão trágica da liberdade: a escolha do Mal. E isso quer dizer, sim, a renúncia a Deus. Mas também se assiste a dramática renúncia ao homem. Esperavam talvez que se dissesse aqui que o Mal Absoluto decorre da deposição da Cruz em favor de alguma outra crença ou convicção. A piedade cristã certamente se ausentou de todos esses palcos da barbárie. Mas, com ela, entrou em falência a Razão, humana e salvadora.”
Celebrar é tornar célebre. É se lembrar. E recordar é trazer novamente ao coração (re-cordis). A Igreja recorda, celebra, a cada ano os passos de Cristo. Nesses últimos dias celebramos a “Semana Santa”. Dentre os momentos mais importantes e dramáticos encontra-se o julgamento de Cristo. Nas leituras desse dia, há um instante em que todos participam, repetindo o que foi dito há 2.000 anos pela multidão: “Crucifica-o! Crucifica-o!”. Cristo foi julgado e condenado por um injusto tribunal, por um covarde e iníquo juiz.
A humanidade parece não ter mudado muito de lá para cá. Muitos de nós continuamos a esquivar-nos de nossas responsabilidades, passando ao largo do próximo; julgamos e condenamos injustamente Deus, exigindo, publicamente, a crucifixão de quem nos apresenta a solidariedade e o amor como um caminho superior e uma via de santidade.
Não obstante tudo isso, ainda devemos optar pela esperança. Sim, pois como diz a Carta aos Romanos 8,24: “É na esperança que somos salvos”.
Grande abraço, Saulo Soares.

domingo, 29 de março de 2009

O GOL



Nenhum sinal nos foi dado para que quando acontecesse acreditássemos, embora fosse algo tão previsível quanto a morte, quanto a vida. Passou por nós sem que a grande maioria sequer percebesse. É quase impossível descrever. Ai de mim! Talvez fosse necessário criar uma nova palavra, um novo idioma que o pudesse definir por completo. A princípio - como nesses filmes em que o mocinho se recusa a aceitar e admitir sua missão – relutei. Mas fui vencido e impelido a contar ao resto de nós o dia em que fomos redimidos de nossa frieza e desolação.
Saiu dos pés de um menino. Não, não dos pés, saiu da alma, como um grito, um parto, um hino de louvor e, então, sim, daí para os pés... descalços como os pés dos pobres que nos visitam e insistem em tirar as sandálias como se pisassem solo santo. Descalços e simples. Simples não por serem ordinários, mas por não serem compostos. Sim, porque os pés, o corpo, a bola, tudo era um só ser e quando ela (a bola) afastou-se dele - porque ele mesmo o quis e o fez! - ele o fez assim como uma mãe que lança o filho e o empurra em direção a sua mais íntima vocação. Em verdade ele a lançou sabendo que perderia algo de si em favor de muitos. E é precisamente aí, no desapegar-se de si e na entrega voluntária que se esconde o mistério do amor e a razão dessas linhas.
Aquele gol aconteceria mesmo se mil goleiros estivessem a defender... De fato, quando a bola entrou, fez-se um profundo silêncio, tal qual como se viesse à tona a verdade sobre nós e a última peça do quebra-cabeça se encaixasse revelando e reunindo a imagem. Foi tão belo que antigos poetas foram vistos andando por lá e a paisagem virou tela de um pintor renomado. O sol chegou mais perto e secou as lágrimas que trazíamos como pequenos segredos em nosso peito. Foi assim.
A essa altura o leitor poderia formular algumas interrogações: Mas, como pode um gol?... Que jogada mágica foi essa? De que forma nos redimiu? Os mais incrédulos diriam com desdém britânico: Just a goal. Bem, disse antes que era quase impossível descrever. Por essa razão não me prendi tanto a detalhes técnicos. Na realidade, para mim, isso é o que menos importa. Mas, devo reconhecer: preciso ser mais claro. Então, vejamos. Bem, lembra quando a bola entrou e fez-se o silêncio profundo? Pois então, naquele momento senti bater em meu peito um novo coração, sim, mais um, fiquei com dois corações(!) e escutei uma risadinha travessa como se alguém que estivesse escondido há muito tempo agora quisesse deixar-se encontrar. Virei-me daqui para lá e não encontrei o dono da risada. Meio atordoado levantei-me esbarrando num daqueles poetas antigos de que falei. Quase que ele caiu! Meu Deus! Se aquele verso não lhe estendesse a mão... Continuei a procurar e, desatento, manchei a camisa na tinta fresca da paisagem, daquele pintor que eu só chamei de renomado porque, na realidade, não sei pronunciar corretamente seu nome. Fui me limpar e acabei pintando de vermelho o meu nariz, como os dos palhaços. Foi aí que o dono da risada riu ainda mais, riu – como diria um amigo – que nem manteiga. A risada vinha do campo. O dono da risadinha era um dos jogadores! Entrei em campo. Tive medo e, quanto mais aumentava o medo, mais escuro ficava a ponto de eu não ver mais nada. Chorei. Foi então que o sol chegou mais perto e secou as lágrimas. Foi quando eu me vi frente a frente com ele – o menino dos pés descalços. Ele se parecia comigo quando eu era criança. Parecia-se também com meu filho. Ele não tinha coração no peito, em seu lugar algo como uma bola de futebol. Não tinha coração, não porque fosse mau, mas porque me havia dado o seu e, com ele, de volta, os sonhos que sonhei, os gols que quis fazer, o escritor e o herói que me imaginei. Ele me abraçou, deu-me um beijo e se foi. Foi assim.
Quem é esse menino? Sou eu menino, é você menino, é meu filho, seu filho... e somos redimidos de nossa frieza e desolação quando com ele nos encontramos. Não importa se na minha ou na sua rua, mas sempre onde dois ou mais estiverem reunidos em nome da paz, da família, da alegria, da amizade, do amor... e do menino.


Saulo Soares

DOIS CIGANINHOS





         Sede de sentido. É o título de um pequeno caderno – Ed. Quadrante - do Prof. Viktor Frankl, fundador da Logoterapia. Trata, obviamente, do sentido que “damos” à vida, especialmente à nossa vida. Diz ele que o sentido de nossas vidas não pode ser “dado”, mas somente encontrado. Não podemos criar um sentido, é preciso descobri-lo. Relaciona essa procura e descoberta com a felicidade. Ela – a felicidade - não é algo diretamente conquistado, e sim uma conseqüência dessa descoberta. Se encontrarmos o sentido, receberemos a felicidade como um efeito, um resultado desse encontro.
         Segundo Frankl há três experiências fundamentais para que isso aconteça: o amor a alguém, o serviço a um ideal e a aceitação do sofrimento inevitável em nome de algo maior. Olhando para essas três dimensões podemos chegar a uma conclusão: a felicidade, então, está... no outro. Não está em mim. Não está no ego. Não está no egoísmo. Está no outro. Talvez seja essa a grande conversão: do egoísmo para o amor. Não dessa para aquela religião, mas da conversão de um movimento interior centrípeto, voltado para si mesmo, para um movimento centrífugo, que foge do próprio centro e vai em direção ao outro.
         Disse isso por causa do Natal que se aproxima. È comum falar e escutar com saudosismo: perdeu-se o verdadeiro sentido do Natal... Como se nós nada tivéssemos com isso! Não estimulássemos esse consumismo desenfreado! Não contribuíssemos para a troca dos valores evangélicos por cifrões! Não fossemos, tantas vezes, avaros e pouco generosos... Culpados ou não, perdeu-se o sentido do Natal e é preciso reencontrá-lo.
         E o que o título desse pequeno artigo tem a ver com isso? Leia essa singela história que a seguir transcrevo e entenderás. Ela foi narrada por Urteaga e fala-nos de dois ciganinhos, um de dez anos, outro de cinco, famintos que, depois de várias tentativas, conseguem algum alimento: um pote de leite. Aqui começa o diálogo:
- Senta-te. Primeiro bebo eu e depois bebes tu.
         Dizia aquilo com ar de Imperador. O menorzinho olhava para ele, com seus dentes brancos, a boca semi-aberta, mexendo a ponta da língua.
         Eu, como um tolo, contemplava a cena. Se vísseis o mais velho olhando de viés para o pequenino! Leva o pote à boca e, fazendo gesto de beber, aperta fortemente os lábios para que por eles não penetre uma só gota de leite. Depois, estendendo o vasilhame, diz ao irmão:
- Agora é a tua vez. Só um pouco.
         E o irmãozinho sorve fortemente.
- Agora eu.
         Leva o pote já meio vazio à boca, e não bebe.
-Agora tu. Agora eu... Agora tu... Agora eu...
         E depois de três, quatro, cinco, seis goles, o menorzinho de cabelo encaracolado, barrigudinho, com camisa de fora, esgota  o leite. Esses “agora tu”, “agora eu” encheram-me os olhos de água! É assim...que temos de nos amar.”
         Jesus nasceu em Belém, que quer dizer “Casa do Pão”, lugar apropriado para nascer o Pão da Vida, Aquele que se faz alimento para nós. Sejamos também “alimento e vida” para nossos irmãos e, quem sabe, descobriremos o verdadeiro sentido de viver. O verdadeiro sentido do Natal.

         Feliz “redescoberta” do Natal!

Saulo Soares


CINEMA



Vi em seus olhos um filme
Onde as casas tinham seu nome,
Os dias tinham seu nome
E à noite sempre saías.


Vi, da varanda dos seus olhos,
Um cinema onde as cores tinham seu nome,
E a fotografia
Deixava beijos à espera.


Vi, nos quintais da sua retina,
O amor em cartaz,
As notas musicais terem seu nome
Que o mundo entende.


Vi, no fim da fita da tarde,
Seu nome que arde na boca: The end.




Saulo Soares

sábado, 21 de março de 2009

POEMA DO AMIGO



Por um cordão umbilical imaginário
Fizemo-nos irmãos na vida.
Pedra por pedra, a casa que acompanha nos caminhos.

Fizemo-nos distantes,
Sem nos tornarmos sozinhos,
Nos versos que a saudade recita.

Dê cá um abraço que eu enlaço minha alma na sua,
E vê se me advinha um pensamento,
Pois os seus passeiam desatentos
Pela calçada da minha rua.

Por um cordão umbilical imaginário
Fizemo-nos irmãos na vida.
Pedra por pedra, a casa que acompanha nos caminhos.

Feito o rio e sua margem,
Tal qual o deserto e a miragem,
Assim como a chegada e a partida.



Saulo Soares

NÃO PERDOE CEDO DEMAIS



Este é o título de um interessante livro da Verus Editora. Os autores afirmam que o perdão é um processo com estágios bem definidos: negação (não admito estar magoado), raiva (a culpa é do outro), troca (somente vou perdoar se...), depressão (por que isso aconteceu comigo? É minha culpa!) e aceitação (finalmente aceito o fato de que posso e devo perdoar, tirando lições de todo o processo). Segundo eles, é preciso passar por estes estágios para que se consolide e dê frutos o perdão. Pular etapas, perdoar antecipadamente, sem uma boa reflexão, não seria lá muito indicado. O Papa João Paulo II tem uma frase de que gosto muito: “Não há paz sem justiça. Não há justiça sem perdão”. Notadamente nós correlacionamos a justiça com a punição, porém devemos estabelecer a mesma relação com a absolvição, com o perdão. Repare que o Papa coloca numa ponta da frase a paz e na outra o perdão. No meio, a justiça, bem parecido com a conhecida figura da balança. De fato para se obter a paz há que se perdoar. Etimologicamente a palavra perdoar – perdonare – significa doar-se além, perpassar a si mesmo em uma doação, per doar. Conheci uma pessoa que dizia que a palavra perdão não estava em seu dicionário. Triste pessoa. Ela também deveria riscar a palavra paz do seu vocabulário.
Nossa natureza parece estar mais afeita à vingança, do que ao perdão. Exige reparação dos “danos”, normalmente em proporção maior do que o mal que nos foi feito. Isso lá é justiça? Porém o interessante é que mesmo a vingança não nos satisfaz por completo. Ainda fica algo a se resolver, ou o medo de uma represália nos torna reféns da situação, inseguros e apreensivos. Carregamos esses fantasmas cheios de correntes por onde andamos. Ficamos presos a quem não perdoamos, dormimos com o inimigo. Dormimos mal.
Então, o que fazer? Parece que o bom senso nos pede para perdoar e seguir nosso caminho livre. Com efeito, perdoar é libertar-se. Mas não é fácil... Há quem diga que perdoa mas não esquece. É fato. O ato de perdoar não apaga as lembranças, é verdade. O Catecismo traz uma saída de mestre para o caso: perdoar não apaga a memória, mas purifica a lembrança. Ou seja, perdoando, cada vez que me lembrar do fato já não me valho do ressentimento e sim da intercessão. Não fico ressentindo o mesmo mal, recordo-o e, aos poucos, a raiva se torna oração pela pessoa que me ofendeu e por mim mesmo. Uma cura. Aliás, o Sacramento da Confissão ou Reconciliação para a Igreja está incluso nos sacramentos de cura! Ele – o Catecismo – diz: o perdão inaugura a cura. A ciência, se por um lado já aceita os benefícios da fé e da oração para o ser humano, também aponta doenças e malefícios oriundos dos maus sentimentos, das emoções negativas, dos rancores e do ódio. Ou seja: o bem faz bem, o mal faz mal. Elementar. Perdoar é um caminho possível, mas, com certeza, um caminho de subida...
Resolvi escrever sobre o perdão por causa das Cinzas e do Carnaval. Dizem que no Brasil o ano, as coisas só começam depois do Carnaval. Lembrei-me de uma frase: “Ao orar, começa perdoando”. Que tal começar o nosso “ano brasileiro” perdoando e traçando um novo caminho, mais livre e em paz consigo mesmo e com os outros? Faça um bem a si mesmo. Dê a si mesmo essa nova chance. Dê aos outros uma nova chance. Como diz a canção: Give peace a chance! (Dê uma chance à paz!).
O subtítulo daquele livro, Não perdoe cedo demais, é: estendendo as duas mãos que curam. Eu mudaria para: Não perdoe cedo demais... mas, perdoe.
Um grande abraço,
Saulo Soares

TRÊS CENTAVOS



Talvez você não se lembre, ou não seja da sua época, porém, havia um quadro no Programa Sílvio Santos com o seguinte formato: uma pessoa numa cabine, com os ouvidos totalmente tapados. Sem que nada escutasse, o apresentador lhe fazia propostas às quais deveria responder “sim” ou “não”, surdamente. Era comum, por exemplo, trocar um carro zero por um cacho de bananas! Do lado de cá da telinha pessoas se compadeciam ou escarneciam, deliciavam-se dizendo de boca-cheia o seu “bem-feito” ou lamentavam-se piedosamente, de acordo com a sua índole. Cruel, mas verdadeiro.
Outra lembrança: Hardy, a hiena chorona, uma personagem de desenho animado interessantíssima. Não obstante as hienas sejam conhecidas por suas “gargalhadas” sem um flagrante porquê – o que seria motivo para serem tidas como incorrigíveis otimistas – Hardy era – num óbvio paradoxo - uma pessimista sindicalizada. Tinha um chavão: “Ó Vida! Ó azar!”. Tudo para ela estava ruim e, se não estava ainda, com certeza, logo ficaria. Lembro-me de um episódio em que ela e seu parceiro, o leão Lippy, perdidos em alto-mar, avistam uma ilhota e, de pronto, Hardy sentencia: “Ó vida! Ó azar! Deve estar cheia de canibais! ”.
Meus amigos, participei pela primeira vez como candidato a vereador em Piraí. Tive a oportunidade de conhecer melhor o município e melhor conhecer as pessoas. Quero registrar aqui o meu sincero agradecimento à todos os que votaram em mim e, também àqueles que não votaram, mas que o fizeram de forma consciente, que souberam, com sua honradez e espírito de cidadania, contribuir com o processo democrático. Meu muito obrigado!
Como diz John Maxwell: “Na vida ou se ganha, ou se aprende”. Considero, particularmente, o aprendizado uma vitória. Aprendi que uma eleição pode ser feita mais com cimentos e tijolos do que com idéias e compromissos. Aprendi, também, que nem sempre é assim. Aprendi que nem todos se deixam levar e não trocam, como no episódio bíblico, “a benção por um prato de lentilhas”. Aprendi, também, que há pessoas cansadas de uma política apequenada e baseada em favores pessoais. Homens e mulheres que não somente sonham, mas lutam. Aprendi que uns tantos se vendem, antes, durante e depois. Que uns poucos compram. Aprendi que, tantas vezes, apertos de mãos não dizem nada ou dizem exatamente o contrário do que querem dizer. Que uma eleição pode se ganhar ou se perder no dia. Aprendi que muitos de nós perdemos a esperança e que outros tantos a erguemos heroicamente. Aprendi que devemos continuar a lutar pelos nossos ideais, não obstante muitos os considerem ingênuos e utópicos. Aprendi e sou muito grato pela oportunidade.
E o que tudo isso tem a ver com o Silvio Santos e a hiena? Simples. Não se toma decisões importantes fechando os ouvidos à verdade, à voz da razão, valendo-se de uma surdez seletiva, apoiando-se em desculpas temporais, capengas, sob pena de nos tornarmos uma hiena chorona por longos quatro anos.
Digamos que, hipoteticamente, vejam lá! – hipoteticamente, eu disse! - alguém vendeu seu voto para vereador no “mercado eleitoral” por R$ 50,00. Sabendo-se que esse voto vale por quatro anos, ou seja, 1460 dias, tal pessoa obteve pelo seu voto a “vultuosa quantia” de R$ 0,03 ao dia!!! Por motivos diversos trocou a oportunidade de fazer valer sua opinião e deixou-se levar pela tentação do imediatismo e da “Lei de Gérson”. Votou em candidato desonesto. Sim, porque quem compra votos age desonestamente e quem vende, também. Se o candidato agiu tal forma durante e campanha, agirá, também, de forma igual ou pior caso eleito. O eleitor trocou uma oportunidade única por um... “cacho de bananas”. A título de comparação, o salário de um vereador em Piraí será em 2009 de R$ 4.644,01 mensais, ou seja, R$ 154,80 por dia.
Não se trata aqui de um desabafo ou de um amargor de quem não foi eleito. Não. Trata-se, fundamentalmente, de uma reflexão, a qual concluo com uma exortação à esperança. Como diz o poeta, cada novo dia em nossa vida é como uma “folha nova de um velho caderno”. Cabe a nós o que nele escrever. Temos escolha e como diria Confúcio:”Não corrigir os erros é o mesmo do que errar novamente”. É preciso refazer o caminho e crer que a mudança começa em nós. Que uma longa jornada é feita passo-a-passo.
A primavera é uma estação associada à vida nova, à esperança. É do poeta cubano Sylvio Rodriguez o belo verso: “Meu amor não aceita fronteira como a primavera não escolhe jardim.”

Escolhamos, pois, ser primavera, não nos importando qual jardim floresceremos em nosso caminho.
Um grande abraço,
Saulo Soares

RUMINAR O IMPONDERÁVEL (Uma vez Flamengo...)


Raras são as vezes em que perco a costumeira noção da minha fraqueza e debilidade. Uma delas é, certamente, num gol do Flamengo. Algo acontece no metabolismo dos meus sentimentos. Minha voz assemelha-se à de um Viking e meu semblante toma ares de uma altiva realeza. Ah, o Flamengo... Capaz de fazer aflorar tantas emoções... O Flamengo de minha infância, do Zico, Adílio, Leandro, Nunes, Júnior e tantos outros. Dos gols acompanhados pelo radinho de pilha, do fone “egoísta”, do tamborim ao fundo, pela manhã, no bate-papo dos analistas, do canal 100...
Creio firmemente que os gols do Flamengo estejam, todos, do original ao derradeiro, escritos num livro secreto e místico e que, a cada gol marcado, realiza-se, cumpre-se uma profecia milenar. Cada gol é único. Um levante popular, legítimo, contra a tirania da tristeza e boçalidade. De fato, parafraseando o “poetinha”: “... que me perdoem os outros, mas o Flamengo é fundamental”.
Alguns poderão argumentar: o futebol existia antes do Flamengo! Pois, pois. De fato. Ora, mas o que existia antes não era propriamente futebol. Era uma forma incipiente do esporte, diríamos, uma larva futebolística, um Flamengo em potencial. O Flamengo nasceu para dar plenitude ao futebol, para sublimá-lo.
O Flamengo ultrapassa o limite do convencional e científico. É metafísico, transcendente, espiritual. Não se pode analisar os jogos do Flamengo de uma forma meramente humana, sob a ótica da tática ou da técnica, ou algo do tipo. É preciso ir além. Romper as barreiras do visível e enxergar o que há de absoluto e verdadeiro. É preciso ruminar o imponderável.
Em verdade, em verdade vos digo, existem, em todo o universo, apenas dois times: o Flamengo e os que não o são. Quem não é Flamengo – pena e comiseração aos infiéis! - é contra o Flamengo e ponto final. Não se admite simpatia pelo Flamengo, nem o Flamengo é o segundo time de ninguém. Ama-se ou odeia-se. Esta sentença é intrinsecamente e explicitamente irrevogável e sua validade dura para sempre. Ad etaernum.
Mas devo confessar... Tenho uma única inveja do outro time: a visão que eles tem das arquibancadas lotadas pela incontável torcida do Flamengo. Nós, inseridos na imensidão rubro-negra, não temos a privilegiada visão a, como diria o sambista, “maravilha de cenário” que têm os outros, de os deixar boquiabertos, babando. Numa expressão utilizada por Nelson Rodrigues: ..”pendendo dos lábios aquela baba elástica e bovina”. Por sinal, é dele, Nelson Rodrigues, um tricolor, um dos mais belos textos sobre o Flamengo:
“...Para qualquer um, a camisa vale tanto quanto uma gravata. Não para o Flamengo. Para o Flamengo a camisa é tudo. Já tem acontecido várias vezes o seguinte:- quando o time não dá nada, a camisa é içada, desfraldada, por invisíveis mãos. Adversários, juízes, bandeirinhas, tremem, então, intimidados, acovardados, batidos. Há de chegar talvez o dia em que o Flamengo não precisará de jogadores, nem de técnicos, nem de nada. Bastará a camisa, aberta no arco. E diante do furor impotente do adversário, a camisa rubro-negra será uma bastilha inexpugnável."

Viram, só? Depois dessas palavras, só me resta bradar, em louvor, um hino, um canto de amor e fidelidade: Uma vez Flamengo, sempre Flamengo...


Saudações rubro-negras,
Saulo Soares.