sábado, 3 de janeiro de 2015

JUNHO EM PIRAÍ

     O povo passa e pisa, com desdém, indiferente, as flores caídas do ipê-amarelo. Pisam o celetista e o estatutário, o optante e o não-optante. A ARENA e o MDB. Todos pisam e nada exclamam em seu andar reticente! Triste, pobre primavera com suas flores gratuitas aos olhares ingratos...
    Ainda bem que chegou esta frente fria! Veio como um sopro de Deus nas geleiras trazido por anjinhos encapuzados!
     Agora sim, vestirei meu casaco e fingirei fumar neblina. Olharei as luzes com sua órbita distinta na névoa e as estrelas de azulinho brilharão com alegria. Terei bons sonhos e o café um gosto amigo.
    No esfregar das mãos, quando vier a boca oferecer um hálito quente, o esboço de um beijo se formará em nossas almas. Beijemos, pois, as mãos.
     As andorinhas empoleirar-se-ão (até a mesóclise aparece nestes tempos!) no fio do pára-raios da Matriz de Sant’Anna, feito um Rosário, um colar de pedras-vivas e, por serem vivas, muito mais preciosas. E ao se tomar un traguito, beber-se-ão também lembranças que nos embotarão os olhos como a manteiga de cacau os lábios.
    A Lua terá seu halo, sua majestade, sua lunar santidade. Agora vejo o cobertor e o chocolate quente, o cigarro com gosto de baunilha e as luvas cheirando a naftalina.
      O frio que sinto não é o frio do mundo... É o quente-frio das palavras de lã e das manhãs despercebidas.

ACCORDÉON

Ando com a sensação de que nunca mais encontrarei a canção que nesta primavera perdi. Cantarolei-a algumas poucas vezes. Bela e simples melodia. E depois... a esqueci! Não como esquecemos os amores marcantes, mas os flertes sem intenção.
            Procurei-a no meu violão, nos quase infinitos e repetitivos dedilhados. Nada. Decidi – que ousadia! – procurá-la no clarinete (eu, um aprendiz!), nas tardes que a noite engolia pelas janelas da Sede da Banda em Arrozal. Lá via a silhueta de uma palmeira entregar-se – relutante e atrevida, como que por dentro querendo e, por fora negando – às nuanças, ora negra, se a nota nos saísse amargurada, ora azul, se o sopro fosse justo e prazeroso.
            É devido dizer, a bem da verdade, que nada sei no clarinete, quase nada. Para mim assemelha-se a um peixe de treze escamas cor de prata e de fala macia. Responde ao nosso beijo recitando notas musicais, como ronronam os gatos às nossas carícias. Dele, apenas subo uma escala, onde o “si” é o patamar entre as verdades que dele aprenderei. Porém, se nada ou quase nada sei de clarinetes, de tardes eu entendo e, naquela, não estava escondida minha canção.
            Mas quem sou eu para lhes entristecer o dia? Acaso algum senhor casmurro que reclama da brisa que espalha as folhas no quintal? Não. Mas nem tudo está perdido: apenas uma canção. Entretanto, como dizia Santo Agostinho: “Nada estará perdido enquanto estivermos em busca.” Faz-se mister insistir, pois, na procura, ainda que como quem não quer achar, inadvertidamente, ao acaso, como às vezes se tropeça na felicidade.
            Subi assim, rotineiramente, aquela despretensiosa rua. Havia trocado duas espingardas com suas cartucheiras num accordéon, disse-me o senhor. Accordéon... accordéon... linda palavra, accordéon! Todos os versos e toda estória deveriam terminar em accordéon: por todo o sempre, accordéon! ... E se amaram e longamente se beijaram... accordéon! E, novamente se encontraram e fizeram as pazes... accordéon!
            Ah, se pudesse lhes dizer:  encontrei,  senhores,encontrei a tal canção perdida! Qual o quê... O verão já se aproxima a salgar-me o rosto e a secar-me a língua e minha canção perdeu-se na primavera. Espero as estações. Pois não se iludam, há sentimentos diversos para cada estação e é inútil procurar no inverno o que no outono se perdeu...

 Daí, então, mansamente, uma flor de melodia se abrirá, em tom menor, e como um fole se abre ao fôlego dos pulmões, nascerá a harmonia. E, então, senhores, escutarão, desde o mais próximo ao mais longínquo ser... por todo sempre, accordéon! 

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

PLÁGIO

AmeriqueMeridionaleRigobertBonne.jpg

O mar é uma mentira, um plágio,                                          
Que me tira do sério e me leva... 
Ao naufrágio.

Um ágil pirata, espadachim a rasgar a vela,
A singrar em mim aquela bela rima...
Que mata.

O mar corsário, único e vário,
Vil e lúdico, pulha e pudico.

O mar mergulha fundo e raso,
No que sonho, no que vazo,
Quando vou ou quando fico.

O mar é uma mentira que há.
Quem tirará o mar de mim?