quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

O FACÃO

 



            Um estampido. O facão em pêndulo, rápido, frenético, a cortar luz e sombra. Corria tanto que já não sentia as botas apertadas, nem o chão sob os pés. Engolia vento, mato e chuva. A glote tensa, ofegante, puxava a língua para trás feito a fisga de um pescador, travando as mandíbulas como um arreio. Tinha receio de virar o rosto e ver. Não sabia bem se algo ou alguém, se deste ou de outro mundo. Valei-me, Deus! - pensava em gritos. Já doía o baço, e o pulmão se espremia e expandia como um fole em frenesi. Torceu o pé, guinchou, ganiu e soltou as pernas, sobre o barro e as folhagens. O facão? - perguntou-se. Passou a  mão pelo corpo rezando para não o encontrar fincado em si. Ouvira dizer que o "sangue quente" dissimulava a dor. Nada. Nem em si, nem próximo. Olhou para trás. Nada.

Tentou se levantar, mas não conseguiu. Uma forte dor no pé. A perna estava como que dormente. Esticou o corpo o quanto pôde, abriu a mão separando os dedos num ancinho e vasculhou o diâmetro possível num acelerado, noutra tentativa de encontrar a arma. Arrastou- se e encostou-se numa árvore. Retirou a bota do pé esquerdo. Sentiu certo alívio. Amarrou-a pela fivela ao cinto. Respirou por uns minutos. O pé latejando, a perna em torpor.

 

Começou a ouvir barulho de cortes de galhos na mata. Passou o punho direito pelo nariz, mordeu as costas da mão, cerrando-a. Aguçou os ouvidos. O barulho diminuía, ficava mais distante a cada lance desferido e se misturava, diluindo-se, ao dos passos molhados, que pareciam o pisar de um pé e o arrastar do outro. Silêncio. A chuva diminuía, mas estranhamente a água sob seus pés subia. Lenta e constante.

 

De repente, um som. Um farfalhar, e um zunido que terminou estanque: tum! A ponta do facão cravou o tronco duma vez, como um decidido "não!". Um breve susto, seguido de um alívio: quem quer que fosse, se quisesse, já o teria matado. Tão firme a lâmina penetrou na árvore que ele pôde se apoiar no cabo. Levantou-se e, tomado por uma coragem ancestral, gritou:

-   Em nome de Deus, quem és tu? O que queres de mim? Apareça ou Vade Retro! Se és alma, diz-me teu nome, encomendarei missas em tua intenção e serás liberto do teu tormento. Se és vivo, mostra-te, homem! Se és o Cão: Crux Sacra Sit Mihi Lux, Non Draco Siti Mihi Dux, Vade Retro, Satana... (a Cruz Sagrada seja minha Luz, não seja o Dragão o meu guia, retira-te Satanás...).

Nada se ouviu após a oração de exorcismo. Quase mais nada. Apenas o borbulhar da água - já pelos tornozelos - interrompia o silêncio soturno.

Retirou sua "Excalibur", cortou um galho que lhe serviu de apoio e arriscou andar. Mancava, doía. Como faria? Mata fechada, noite, chuva, perna e pé… Foi quando reparou o caminho aberto, uma picada recente. Lembrou-se, então, do som que escutara enquanto permaneceu encostado na árvore. Ele, quem quer que fosse, abrira um caminho na mata. Por um instante hesitou em seguir por ali. Persignou-se, beijou com devoção o Crucifixo pendurado em seu pescoço junto ao escapulário, lembrou-se do Salmo: Nam et sit ambulavero in valle umbrae mortis, non timebo mala, quoniam tu mecum es (Ainda que eu caminhe pelo vale da sombra da morte, nenhum mal eu temerei, pois estás junto a mim). Repetiu diversas vezes o Sub Tuum Presidium confugimus, sancta Dei Genitrix (À vossa proteção recorremos, Santa Mãe de Deus) cada vez mais forte e mais alto para que seu próprio coração ouvisse e de modo a afugentar quem quer que fosse. Seguiu pisando com um pé, arrastando o outro.

Chegou à cabeceira da Ponte Bela. A chuva já havia parado. No céu, uma enorme bola prateada. Expirou todo o ar dos pulmões dizendo num sopro emocionado o seu filial Deo gratias. Olhou para o facão: sangue e algo inscrito: INUN… Sangue! Franziu a testa como se forçasse um pensamento claro, como que não o quisesse deixar escapar. Soltou de imediato o facão. Sangue! Seria seu? Ter-se-ia cortado. Revistou-se ligeiro. Não era seu, concluiu também com pressa. Quem quer que fosse, havia-se ferido, ou pior, ferido alguém. Quem sabe, Quem quer que fosse teria até assassinado. E a arma, ora no chão reluzindo a lua, estivera há pouco em suas mãos! Pensou em voltar e ver o que havia pelo caminho. Talvez não tenha percebido alguém caído. O pé latejava como um tambor, ritmando a tensão. Tinha a leve impressão de que suas lembranças não eram suas...

Mas, se voltasse e encontrasse? Como poderia ajudá-lo? O mais sensato era procurar alguém em São João Marcos. Temia que não o acreditassem, entretanto, era o que devia ser feito. Era jovem, mas, enfim, tinha boa índole, haveriam de crer nele. Já o havia provado no caso do ostensório e dos candelabros da Igreja Matriz. Por conta de um erro gramatical de latim em uma falsa carta do Bispo, descobriu o padre fraudador.

Ele o havia surpreendido - não sem ir às vias de fato com o impostor de batina e seu afiado punhal - tentando fugir, às escuras, com os objetos sacros. O falso padre escapou a cavalo, mas os objetos ficaram para trás, a salvo. Os objetos e uns pontos dados em sua face, que lhe renderam uma cicatriz em forma de cruz. Dela não se orgulhava. Dizia que a única cruz da qual devíamos nos gloriar era a de Cristo. E somente ela. Rezava para que logo lhe crescesse a barba e pudesse encobri-la. Ficava constrangido quando a queriam tocar. Cicatriz por cicatriz, mais pungentes eram as dos escravos, pensava. Isto, não o fazia por piedade excessiva, mas por plena convicção de fé. Sabia dos seus pecados. E os conhecia tão bem, que somente Deus e a Virgem Santíssima sabiam mais do que ele.

Deu mais uns poucos passos, atravessou a ponte, levantou os olhos e não viu a cidade. Apenas duas pequenas luzes acesas e o som das águas. Não chovia. Sentiu uma fisgada no pé. Olhou para baixo, pegou o facão e constatou: o sangue era seu. Escorria pela canela e misturava-se à água que subia.

Quem seria Quem quer que fosse? Talvez o falso padre buscando vingança? Ou algum capataz de um “menos algum” Coroné metido a besta e a Barão por conta de seus artigos abolicionistas no jornal O Município? Não era má pessoa, de modo geral era benquisto. Mas não há quem passe por essa vida - se desejar ser fiel aos seus princípios - sem colecionar uma penca de desafetos. Não conseguia conciliar o "amai o próximo como a si mesmo" e o "estive preso, nu, faminto e doente" com a dor das senzalas.


Havia também Lívia. Dizia ele não trocar sua São João Marcos pela Corte ou por Paris, muito menos um simples olhar de Lívia pelos beijos de todas as princesas, rainhas e concubinas. Lívia. Lívia era um doce sonho. Os filhos dos Barões a cortejavam, o sol a cortejava pelas manhãs! Ele sabia da inveja e dos ciúmes que causava neles. Dizia que todos os pecados já estavam em potência em Adão, em Caim. Sabia que muitos desejavam que não existisse, que partisse, que sumisse, mas não cria que pudessem atentar contra sua vida. Não devia dar ouvidos e trela a esses pensamentos. Sabia que era assim: por não saber, imaginava, e a imaginação, dizia a Santa D'Ávila, era a "louca da casa". Ou era o falso padre, ou algum capataz dos Coronéis que o perseguia, concluiu.

Não era rico. O pouco dinheiro que juntava tinha dois destinos: casar-se com Lívia e comprar a liberdade de Simplício, seu amigo. Se não libertasse todos - seu grande sonho - pelo menos seu amigo. Simplício. José Simplício. Para ele, Sicio. Era como se seu irmão fosse. Aprendera com ele os cantos, a cultura e a amizade. Ensinou-o a ler e escrever. Até umas poucas lições de Latim e Francês. Bonjour, bonsoir e uma gargalhada logo desfazia os biquinhos. Ia, às vezes, à noite, às escondidas, visitar a senzala onde Sicio ficava. Pedia bênção, licença aos mais velhos, trazia vinho, azeite e vinagre para as feridas, uns poucos mantimentos, pão, e a broa que Ciana cozia.

Pe. Pietro D'Andrea, seu confessor, atendia - ainda que receoso dos fazendeiros - seus pedidos de suprimentos aos escravos. Talvez o pároco guardasse em seu coração a esperança de que Bernard retornasse ao Seminário. Mio Bambino, dizia, ajuntando o polegar aos demais dedos da mão. De mais a mais, Bernard sempre o lembrava, agradecendo: “São nossos pequenos, padre! São os pobrezinhos de Jesus!” Marthe, sua mãe, por sua vez, dizia: "Como come pão e broa este menino, valha-me Deus!", piscando o olho, matreira, para Ciana, sua ama de leite. Deus caritas est!

 

Caiu. Apoiara todo o peso do seu corpo no galho que lhe servia de muleta e este não resistiu. Sentiu vontade de rir de si mesmo, tamanha a falta de sorte. Sentiu fome e saudades da casa da mãe e do tempero de Ciana. A mesma Santa da "louca da casa" também afirmava: "Deus está entre as panelas!", referindo-se aos afazeres diários como via de santidade. Pensou na cozinha de sua casa, na mesa, no calor do fogão, nas panelas cheias de canjiquinha com fartos pedaços de carne, no doce de abóbora e no arroz-doce. Estava, de fato, faminto. Recordou-se também do personagem bíblico que trocou a bênção do pai por comida, um prato de lentilhas e, como não lembrar de Nosso Senhor Jesus Cristo no deserto, dizendo: "Nem só de pão, mas de toda Palavra…" As águas subiam.

Pensava isto enquanto segurava o facão próximo aos olhos. Lembrou-se da inscrição que começara a ler quando viu pela primeira vez o sangue. INUN...DATIO. INUNDATIO+1907+EXPLODERE+1939. Leu girando o facão na contraluz, identificando as letras em baixo-relevo. A caligrafia não lhe era estranha, mesmo que gravada num metal.  Sabia o que significavam os termos. Referiam-se, certamente, a uma data e um acontecimento. 19 de julho, intuiu. Poderia ser 1907. Mas ainda estavam no final dos anos 1800. E 1939,então? Tinha tempo. Tinha? Pensou na morte e em Lívia. Pensou vê-la. Sorriu. Começava a delirar.

 

- Lívia, Lívia! Se eu morrer, prometa-me libertar Simplício. Não se deve negar nada a um moribundo, sabes! Sabes, também, que eu te amo e que levarei o meu amor por toda a eternidade! Chama-me Pe. Pietro. Listo, Ligeiro. Diz que traga a estola, o óleo e a Eucaristia!

 

Delirava livremente. A cidade escura começou a envolvê-lo. Sentiu frio como no dia em que fugiu de casa e pulou a janela do Teatro Tibiriçá. Ficou até o anoitecer. Sentiu medo e de lá saiu e foi esconder-se na Igreja do Rosário, aos pés da imagem da Santinha. Quando aprontava, corria para as barras da Mãe. Da Virgem Mãe. Delirava livremente.

Sentiu umas gotas no seu rosto. Voltava a chover? Estranhamente as águas começaram a baixar. Havia sal nas gotas. Abriu os olhos e sobre ele choravam desesperadas sua mãe, Ciana e Lívia. Fechou as pálpebras. Sicio gritava com ele: Não! Bernard! Meu irmão! Abriu novamente os olhos e viu Pe. Pietro chegando apressadamente.

Delirava novamente. In nomine Patris, et Filii...

Parecia ouvir uma das valsas que a Prazer das Morenas, sua banda favorita, tocava nas festas da cidade. Tentara o clarinete. Quisera aprender para tocar para Lívia. Não conseguia alcançar as notas mais agudas. Embocadura, dizia a ele o Maestro Jacy, não falas francês? Ele mesmo comporia uma canção. Uma valsa, pois “uma valsa torna os homens melhores!”, dizia com ares de filósofo. Já tinha os primeiros compassos. Assobiava-os repetidamente enquanto escrevia seus artigos para O Município. Abriu os olhos. Salve Regina, Mater Misericordiae (Salve Rainha, Mãe da Misericórdia)Bernard, voltaste!, gritava, chorando, Sicio.

Sicio, após longa procura, o havia encontrado na noite anterior, desacordado próximo ao Rio das Araras, baleado na perna, com um facão nas mãos, sinais de maus-tratos e desidratação. Sacou o facão de sua mão, fincou-o no tronco, levantou o amigo aos ombros, pegou novamente o facão e correu o quanto pôde abrindo afoitamente uma picada no matagal. Caiu e feriu o pé. Levantou-se, colocou os braços de Bernard sobre seu ombro e seguiu, um pé pisando, outro arrastando. Lembrou-se da história do Cirineu que Bernard lhe contara e redobrou as forças. Bernard delirava em latim - exorcismos e Salmos. Simplício deixou-o à cabeceira da Ponte Bela e, mancando, foi o mais veloz que pôde buscar ajuda na cidade. Já era tarde. Todas as luzes haviam-se apagado, exceto as da casa de Bernard e da Casa Paroquial. Duas pequenas luzes. Gritou até ferir a garganta, acordando o restante da cidade, da Imperial à Matriz.

Trouxeram-no no lombo de um jumentinho. Marthe e Ciana preparavam, entre preces, bacia e água quente. Chamaram Dr. Carolino às pressas. Logo a notícia correu pela cidade. Houve quem dissesse ter visto um desconhecido perguntando se o tal “menino que escrevia coisas no jornal” ainda estava vivo. Vivo, disseram. Montou no seu cavalo e ficou à certa distância da casa.

O médico, enfim, chegou. Olhou o ferimento. Levantou as pálpebras de Bernard. Aferiu sua pulsação. Meneou a cabeça e abriu apressadamente sua maleta. Mandou Sicio aquecer o facão até que a ponta ficasse em brasa. Limpou a ferida e, depois de um tempo, retirou a bala. Jogou-a na bandeja como se dissesse: Alea jacta est (A sorte está lançada). Chamou Sicio.

Marthe e Ciana eram uma só mãe. A mesma espada transpassava os dois corações. Lívia molhava as mãos de Bernard com Ave-Marias. Um chiado, um enorme grito, uma fumaça, um cheiro estranho. Bernard contorceu seu corpo como se parisse a si mesmo. Havia perdido muito sangue e água. Não conseguia falar, ver, mover-se. Apenas ouvia um zumbido como aquela inatingível aguda nota do clarinete. Enfim conseguira.

Mio Bambino, mio bambino!, Pe. Pietro sussurrou no seu ouvido. Abriu os olhos, viu o sacerdote e, com muita dificuldade, palavra, pausa, palavra, balbuciou: “Meu Pai, pequei contra o Céu e contra Ti…” Sentiu o óleo escorrendo de sua fronte até o seu rosto. “É como óleo suave que desça à barba de Arão”, lembrou-se doutro Salmo. Quis sorrir… não teria barba para encobrir a cicatriz da cruz... Sentiu um suave gosto de pão em sua boca, um gosto de brancura. Viu a Luz. Ouviu uma voz feminina indescritivelmente bela que lhe disse: “Bernard, vem para Casa!” E lembrou-se dos fervorosos “nunc et in hora mortis nostrae. Amen.” (agora e na hora de nossa morte. Amém.). Ergueu-se e foi.

 

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Chegamos! Depois de tanto esperar passar essa pandemia, podemos reavivar a memória e saborear a História! Gostaram da rima? Senhores Passageiros, bem-vindos ao fantástico e mágico Parque Arqueológico e Ambiental de São João Marcos!, disse Antunes, o animado guia ao grupo de estudantes da Escola Municipalizada Lúcio de Mendonça, de Piraí, cidade vizinha.

-  Vai ter múmia? indagou Guilherme.

-  Não, múmia, não. Mas história, sim! E muita!, respondeu o Professor André.

-  A única múmia aqui é você, Guilherme!, gritou, arrancando gargalhadas, Fabrício.


Essas ruínas têm muito a nos contar, dizia o Professor. Dias de glória! Milhares, milhões de arrobas de café por ano! Teatros, óperas, artistas estrangeiros! Bandas de música! Fazendas, homens riquíssimos, barões! Mas, também, escravidão, escravos… E tudo isso iremos conhecer hoje. Vamos ao Centro de Memória?

 

-  Não corre, Guilherme! Espera o Professor!, alertou Fabrício.

-  Ai! Torci meu pé!

- O que houve, Guilherme? Já não falei para sempre me esperar… Machucou?, indagou o Professor.

-  Tropecei nessa pedra aí.

-  Deixa eu ver o pé. Dói?

-  Um pouco.

- Vamos lá no Quiosque pegar umas pedras de gelo. Vai passar, disse o Professor tranquilizando Guilherme.

-  Não é pedra, não!, gritou Fabrício. Parece o cabo de um...

- Não mexe, ok? Vamos falar com a Administração. Pode ser algo importante, disse o Professor.

 -   É. Parece um... facão, disse o Administrador. Bem antigo, por sinal. Esperem um pouco. Tem algo inscrito. Deixa eu limpar com cuidado a poeira - soprou passando levemente o indicador sobre a lâmina. Agora, sim: “Bernard e Lívia”...

 

 

Saulo Soares Monteiro de Carvalho