quarta-feira, 19 de agosto de 2015

SALA DE ESPERA

Amigo leitor, esta coluna pretende-se uma pequena pausa no veloz ritmo que rotineiramente nos é imposto; um sopro no quente copinho de café enquanto intui-se um pensamento bobo, qualquer, despretensioso.  Nem mais, nem menos.
            Dito isto, ocorreu-me a lembrança do que observei, dia desses, numa sala de espera. Como se sabe – salvo exceções – as salas de espera nos colocam em estranhas situações: pescoço levantado para ver a televisão que chuvisca; pescoço abaixado para ler as revistas em que chuviscam socialites em seu mundo diverso, Photoshópico. Um meio sorriso para a senhora do lado, um bocejar contido pelas mãos, um menear de cabeça a discordar da notícia que se leu e, assim passa – muito devagar e numa desconhecida dimensão – o tempo nas salas de espera.
            No sofá em frente, um senhor: óculos de lentes não muito espessas, armação sóbria e escura, bigode com fios grisalhos e desalinhados, pele curtida pelo sol, sandália tipo franciscano, gasta; calça social, camisa quadriculada com finas linhas na horizontal, um pouco mais grossas na vertical e em graduação de cores, com fundo branco; gola – uma em pé (como orelhinhas de cachorro) outra deitada – cabelos por cortar, penteados com creme e para trás, onde as ondas teimavam em não lhe obedecer. Suas mãos: calejadas, não se fechavam. Mãos sempre abertas, senhores!
            Mas ele - não lhe disse amigo leitor - tentava ler uma revista. Pois bem. Folhear uma por uma, as páginas, mas (que pena!)... não conseguia. Suas grossas digitais não lhe permitiam tal suavidade. A cada vez que ousava tentar, diversas folhas se passavam juntas, como os dias de sua vida, suponho... Pobre senhor (poderíamos deduzir)! Lia e relia, indefinidamente, a capa da revista. De fato, ele é quem tinha estórias a contar...
Senti pena, porém ele... sorria. Se vivo fosse, um grande amigo diria que ele “ria que nem manteiga”. Tinha uma sabedoria silenciosa, monástica e uma realeza que vai além do vão glamour. Rico senhor (diríamos, agora, sem sombra de dúvida!)! Parecia, ao olhar as revistas, sentenciar: “Há pessoas tão pobres, mas tão pobres, que só têm dinheiro...”

            A vida é um pouco assim, paciente leitor: dia após dia, trabalhando tanto e tanto mais, às golfadas o tempo vai engolindo as horas, engrossando nossas mãos, calejando-nos o coração. Mas isso é outra conversa...

(Publicado no Jornal CORREIO COMERCIAL da Associação Comercial e Empresarial de Barra do Piraí - Coluna "PAUSA PARA O CAFÉ").

HERÓIS ANÔNIMOS

Para Emanoel Xavier Bittencourt.

         Desorganizados, uni-vos! Não tão próximos, para que não pareça algo previamente organizado.
         Somos, senhores, a alegria do mundo! Heróis anônimos, sem rosto, sem reconhecimento público, sem medalhas, sem triênios ou quaisquer adicionais por tempo de serviço. Fazemos da vida uma eterna redescoberta daquilo que uma vez achamos e que perdemos logo em seguida. Ou vice-versa.  Somos os príncipes da surpresa! Surpreendemo-nos a nós mesmos! E lembramo-nos apenas de... esquecer.
         É; somos boas criaturas. Temos bom coração. Livres, independentes. Na verdade, esquecemos quase tudo: a ingratidão, os rancores, as mágoas e o dinheiro também.
         Nós, os desorganizados, somos românticos! Sim, cavaleiros de capa e espada. Sempre nos apaixonamos! Quase que semanalmente... Mas, por quem era mesmo? Bem, isso não vem ao caso... O destino (este sim, vilão miserável e arquiinimigo terrivelmente organizado) guarda-nos apenas a solidão e as marginais, periféricas e suburbanas avenidas.
         Mas não entristeçamos: temos olhos e ouvidos para as coisas simples e belas. Observamos atentamente o curso do Rio Piraí, o canto dos canários, o vôo das andorinhas, o acorde que magistralmente destoa do padrão e nos faz, prazerosamente, encolher os ombros. Assistimos aos gols do Flamengo como se nossos fossem e ao nasceres e pores-do-sol na Serra das Araras (como se fossem nossos). Somos felizes na alegria dos outros e, empáticos, lamentamos o pesar alheio como soldados da esperança feridos na própria carne.
         Sabemos que a bagunça do quarto, os discos empilhados, aquela carta por responder, extratos bancários, fichas telefônicas, livros emprestados, números de telefones, relógios sem bateria, apenas um pé de meia, reclames do chefe, recortes de jornais, cartelas vazias de aspirinas, elásticos arrebentados, clipes tortos e aquela caneta-fantasma que, há um minuto estava em cima do criado-mudo(!), de forma alguma nos desmerecem.
         Os mil compromissos assumidos e não cumpridos não revelam pouco caso, senhores, definitivamente... quase. É antes um desejo de nunca recusar nada a ninguém. Sim, tentamos ser agradáveis e disponíveis. Desagradável e impiedoso é o tempo, primo-irmão do destino! Tão certinho, como um chato com lupas, chega a nos causar pruridos! O tempo, as horas e os minutos não são caridosos. “Os dias são maus”, nos adverte a Santa Escritura, corroborando-nos.
         Aquele maço de cigarros vazio, que há três dias está embaixo da janela, merece profundo respeito. À insônia, em baganas a transbordar o cinzeiro, fez companhia... Somos, com efeito, baganas do que fomos; senhores, filtros impregnados de nós mesmos.
         Mas não nos abatamos! Forçados pela incompreensão e pela Receita Federal, às vezes esboçamos uma lágrima, embaça-se, dolorosamente, os olhos.  Porém, se acaso dela precisarem para regar uma flor: cá está!
         Sim, somos profundamente crédulos no impossível, no improvável, no gol aos 45, no amor aos 90 e no bilhete da Federal! Dizemos ter “estrela”, mas no fundo, acho que Deus gosta de nós...
         Assim, os desorganizados, desligados, esquecidos, atrasados e tantas outras fabulosas criaturas desprendidas e lunares pedem, humildemente, passagem neste mundo onde a tristeza e a indiferença encontram-se “agendadas” por muitos anos.

Piraí, 19 de agosto de 1991. 06 da manhã.

(Revisada em 19 de agosto de 2015).

sábado, 15 de agosto de 2015

FLERTE



Flerto de tão perto (e a esmo)
A loucura e a insanidade.
Que chego, de mim mesmo, sentir uma inexplicável saudade.

Se há amor, eu invento manhãs.
E, suspenso, do alto afugento os tortos cães do pensamento...
E me vou, e me vôo, e me vou.

Flerto de tão perto a demência,
Que mudo a aparência à minha alma dada.
E choro, e  rio, e oro por horas e horas a fio...
De espada.

Flerto de tão perto o absurdo
Que a tudo relativizo.
E diviso, em meu próprio rosto, a mortalha.
E cego, enxergo mudo. E, surdo, para meu desgosto,
No velho espelho da vida,
Pinto o reflexo (suicida) de um novo canalha.