terça-feira, 21 de outubro de 2014

CORES

Há cores invisíveis. Que se dão aquém da retina.
Que se escondem atrás da cortina,
E não se deixam entrever.

Há cores nuas. Sensuais. Cores menos, cores mais.
Sem pudores, castas, vastas e banais.
Há cores de não se ver.

Há cores tantas, desconhecidas. Sem pretensão, esmaecidas, internas.
Que se apresentam sempre e quando, inerte, tu hibernas.

Há cores que a poesia conhece (e somente ela!). Há cores, ah!, há cores-sons.
A cor do verso e da rima que a palavra esgrima com o poeta,
Que amanhece e anoitece a inflar a vela dos pulmões. Há, sim, há cores-sons!

Há cores tantas e diversas,
Inversas à janela dos olhos, imersas no vento sem fim.
Há cores que existem no silêncio de quem se ouve e se vê por dentro,

Há cores que tento pintar em mim.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

ALMA PORTUGUESA


Há uma alma portuguesa por se revelar,
Uma guitarra no peito e um fadista na garganta.
Um gotejar de notas tristes que não se estanca,
Uma amarra prestes a desatar.

Há uma alma brasileira (também),
Que brada seu sonoro amém ao fim da oração.
Que se orgulha e que borbulha de mistura e miscigenação (tantas),
Um átimo que dura toda a vida, um amor da mais pura medida,
Uma Fátima e uma Aparecida (santas).

Há um não sei quê de tristeza que se quer por companhia,
Há uma noite que se quer dia, um dia que se quer noite,
Um açoite que se quer corpo, um corpo que se quer açoite.

Há uma alma portuguesa por se revelar,
E uma saudade que não sei se é saudade de mim (incerteza!)
Ou se vem do (salgado) mar.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

INSONE


Cães ladram, lobos uivam:
É noite na mente escura.
Nada escapa aos dentes dessa matilha,
Ao escalpo dessa faca,
Ao frio dessa paura.

Cães ladram, lobos uivam:
As ruas são sua ilha de inexata proporção.
O som das patas do relógio, o tempo, à unha, marca:
Ninguém se desvencilha desse necrológio (como se supunha),
E a morte os sonhos em naufrágios abarca.

Cães ladram, lobos uivam:
O medo paga o óbolo ao silêncio.
A cada passo (será que ouço?) que sussurra no lóbulo pênsil a madrugada,
Do fundo do poço urra um vento inerte uma triste gargalhada.

Cães ladram, lobos uivam:
Mas, eis que vejo a luz do dia que amanhece!
Um pavio aceso num rosário, um sol de preces a afugentar os cães!
Ó, vãs noites! Ó, incerto itinerário que oferecem as sangrentas noites vãs!


sábado, 16 de agosto de 2014

OUTRAS HORAS

São outras as horas que percorro,
Como outras são as mortes das quais morro diariamente.
São vários os tempos e as distâncias,
Os vértices e as vertentes,
Vou da velhice à infância,
Do saber a ignorância,
Num breve momento em que sou ausente.

Vou. E não volto,
Como as águas às nascentes o fazem,
O Piraí me leva e em mim planta
O deserto, a sede e a miragem.

Vou. E não volto,
O Piraí me leva entre garças, capivaras e tucunarés.
Vou. E não volto,
Pois já não sou eu mais quem canta:
Quem canta és tu! Mas quem tu és?

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

NAU

Já é tarde: escuto essa voz...
Tarde para o que sonhaste tanto:
Preparaste demais...

Tarde para ir ou voltar,
Já não há mais tempo, já não há mais canto:
Preparaste demais...

Não há vento, nem velas a inflar,
Tintas ou telas, navios ou mar.
Ficaste no indeciso cais, ó Homem, ó Vida: Preparaste demais!

Foi-se a ousadia, o passo que não deste,
O traço que à caneta recusaste,  a voz que à garganta emudeceste!
Escolheste o medo, o lúgubre,
Sucumbiste ao dedo que em riste acusa:
Preparaste, demais e amiúde, ó triste alma difusa!

sábado, 3 de maio de 2014

HORDAS ANCESTRAIS

Vi nos meus lábios
O sorriso do meu pai.
No apinhado dos dentes – ai! –
As emoções cravadas no osso...

Ouvi do fosso da garganta
A voz das cordas vocais das hordas ancestrais a gritar:
“Vai! Levanta e canta! Porque nós – ah! –  já não somos mais!”

Vi, na barba falha,
A cega navalha da vida e da morte.
No torto corte que emoldura o rosto
O tempo a dizer: “Isto posto, lancemo-lo à sorte:
Rasgar ou tecer?”

Vi o que não vejo comumente,
O que à luz do dia não percebo.
Vi, tarde demais e claramente,
O que deveria ter visto cedo e urgentemente.


Saulo Soares

terça-feira, 29 de abril de 2014

ESCREVO

Escrevo porque me esqueço,
Pois a memória cobra um preço exorbitante: quanto mais passam os dias - obra ofegante! - Mais o que era perto se faz distante...

Escrevo porque me canso,
Pois não alcanço o tempo que passou. Escrevo porque vou...

Escrevo porque sou lento,
Porque leve o vento leva, porque chove, porque neva... cá dentro.

Escrevo porque me curvo, porque me turvo, porque não sei.
Escrevo porque hei, porque que um dia fui. Escrevo porque dilui...

Escrevo, pois me espera a morte e me chama à vida. Escrevo porque que é ferida...
Escrevo, pois quer queira ou não queira, um dia, na noite derradeira... não mais escreverei.




Saulo Soares