sábado, 3 de janeiro de 2015

ACCORDÉON

Ando com a sensação de que nunca mais encontrarei a canção que nesta primavera perdi. Cantarolei-a algumas poucas vezes. Bela e simples melodia. E depois... a esqueci! Não como esquecemos os amores marcantes, mas os flertes sem intenção.
            Procurei-a no meu violão, nos quase infinitos e repetitivos dedilhados. Nada. Decidi – que ousadia! – procurá-la no clarinete (eu, um aprendiz!), nas tardes que a noite engolia pelas janelas da Sede da Banda em Arrozal. Lá via a silhueta de uma palmeira entregar-se – relutante e atrevida, como que por dentro querendo e, por fora negando – às nuanças, ora negra, se a nota nos saísse amargurada, ora azul, se o sopro fosse justo e prazeroso.
            É devido dizer, a bem da verdade, que nada sei no clarinete, quase nada. Para mim assemelha-se a um peixe de treze escamas cor de prata e de fala macia. Responde ao nosso beijo recitando notas musicais, como ronronam os gatos às nossas carícias. Dele, apenas subo uma escala, onde o “si” é o patamar entre as verdades que dele aprenderei. Porém, se nada ou quase nada sei de clarinetes, de tardes eu entendo e, naquela, não estava escondida minha canção.
            Mas quem sou eu para lhes entristecer o dia? Acaso algum senhor casmurro que reclama da brisa que espalha as folhas no quintal? Não. Mas nem tudo está perdido: apenas uma canção. Entretanto, como dizia Santo Agostinho: “Nada estará perdido enquanto estivermos em busca.” Faz-se mister insistir, pois, na procura, ainda que como quem não quer achar, inadvertidamente, ao acaso, como às vezes se tropeça na felicidade.
            Subi assim, rotineiramente, aquela despretensiosa rua. Havia trocado duas espingardas com suas cartucheiras num accordéon, disse-me o senhor. Accordéon... accordéon... linda palavra, accordéon! Todos os versos e toda estória deveriam terminar em accordéon: por todo o sempre, accordéon! ... E se amaram e longamente se beijaram... accordéon! E, novamente se encontraram e fizeram as pazes... accordéon!
            Ah, se pudesse lhes dizer:  encontrei,  senhores,encontrei a tal canção perdida! Qual o quê... O verão já se aproxima a salgar-me o rosto e a secar-me a língua e minha canção perdeu-se na primavera. Espero as estações. Pois não se iludam, há sentimentos diversos para cada estação e é inútil procurar no inverno o que no outono se perdeu...

 Daí, então, mansamente, uma flor de melodia se abrirá, em tom menor, e como um fole se abre ao fôlego dos pulmões, nascerá a harmonia. E, então, senhores, escutarão, desde o mais próximo ao mais longínquo ser... por todo sempre, accordéon! 

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